Recentemente chegou a mim um caso muito estranho. Um advogado amigo meu, mesmo comparecendo ao fórum do juizado especial da Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, teve o seu cliente considerado revel, pois o comparecimento exigido pelo cartório deveria ser feito anteriormente de forma virtual, sem o qual o físico seria considerado nulo. Como assim foi derrogado o acesso?
Ao estudar o caso, fui entender que o TJRJ emitiu Ato Executivo sobre o procedimento eletrônico, que possui o n. 5.877 de 2010, e que nele consta em seu art. 6º a obrigatoriedade do pré cadastro virtual. A falta deste pré cadastro obsta às partes a participação processual no seu formato eletrônico, o que no caso do meu amigo, advogado em São Paulo, não tinha como saber deste obscuro ato.
Fico me perguntando: que positivismo jurídico instituiu que ato executivo derroga lei especial e, principalmente, lei constitucional do direito de ação, à petição e o acesso ao judiciário? Que doutrinador jurídico sustenta esta tese neste procedimento eletrônico instaurado no TJRJ?
Diante destas perguntas sem respostas, há que se fazer uma radiografia de como foi construída esta inconstitucionalidade, para entendermos a gravidade dos atos que estão sendo convalidados neste TJRJ.
1. Do Comparecimento Físico
Não pode um Ato Executivo, por mais boa vontade que tenha, impedir ou obstaculizar o funcionamento do Código de Processo Civil, bem como a lei específica dos Juizados Especiais. O Ato Executivo deveria dar vazão às normas legais processuais e não enfrentá-las. É o princípio positivo da ciência jurídica ou pelo menos deveria ser.
A revelia, conforme o art. 20 da Lei n. 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais, determina o seguinte:
Art. 20. Não comparecendo o demandado à sessão de conciliação ou à audiência de instrução e julgamento, reputar-se-ão verdadeiros os fatos alegados no pedido inicial, salvo se o contrário resultar da convicção do Juiz.
O não comparecimento não é o virtual e sim o físico, até porque à época da edição deste código de processo não existia a internet.
Nem por analogia poderíamos entender de forma diversa, o que corrobora o parágrafo 3º do art. 18 da Lei n. 9.099/1995:
§ 3º O comparecimento espontâneo suprirá a falta ou nulidade da citação.
As partes que forem à audiência não podem ser impedidas de juntarem os seus atos constitutivos, bem como apresentar contestação de forma oral, pois o comparecimento espontâneo supre a falta ou nulidade de citação, tal como é permitido na lei específica. Contudo, o Ato Executivo “derrogou” o art. 18, § 3º, da Lei n. 9.099/1995, pois a parte tem que estar “cadastrada no sistema do TJRJ”. O código é lei, já diria Lawrence Lessig e os funcionários da Justiça.
2. Do Saneamento do Defeito Processual
Vamos considerar que este procedimento eletrônico kafkaniano existente possui outras condições para confirmar a sua validade jurídica, a fim de que não consideremos ele simplesmente absurdo por preconceitos. Nesse passo, temos que ampliar a análise para outros campos da teoria geral do processo, a fim de encontrarmos elementos que fundamentem esta perspectiva desenhada por este ato executivo.
Será que no Processo Civil o formalismo é regra geral que obriga as partes a seguirem as normas do procedimento eletrônico instaurado? Há como se realizar o ato de outras formas? O Ato Executivo do TJRJ impede o saneamento da falta cometida, pois obriga as partes a somente formarem a relação processual via eletrônica.
Por este prisma, a resposta destas perguntas são inicialmente direcionadas à interpretação dada pelo art. 13 do CPC:
Art. 13. Verificando a incapacidade processual ou a irregularidade da representação das partes, o juiz, suspendendo o processo, marcará prazo razoável para ser sanado o defeito.
Assim, deve o Judiciário fornecer estes instrumentos jurídicos a fim de conceder aos cidadãos os meios de superar esta falta. Contudo, o TJRJ, como num estado de exceção, por meio dos seus conciliadores e juízes togados, ao arrepio da lei, decretam diariamente a revelia das partes que não realizam o pré cadastro virtual (outros casos já me foram noticiados). Para piorar, estes serventuários públicos aplicam a revelia sem ao menos conceder as partes a clemência de um prazo razoável para fazer o cadastramento de seus atos constitutivos e procuração devidas.
Ademais, considere-se, novamente, que este estado de exceção praticado pelo TJRJ seja existente e válido, as partes ainda teriam o prazo concedido por lei, já que o CPC abre, em seu art. 154, um meio de que o ato processual possa ser feito de outra forma.
Diz o art. 154 do CPC que “os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, Ihe preencham a finalidade essencial”.
Poderiam as partes convalidarem a falta processual com a sua presença física na audiência, como no caso do meu amigo. O TJRJ deveria colocar à disposição dos cidadãos meios práticos para que eles pudessem dar prosseguimento ao procedimento justo em contraditório. Aliás, existem cidadãos, advogados ou não, que não possuem acesso à internet. Isto não foi pensado pelo TJRJ.
Cândido Rangel Dinamarco leciona sobre o que é instrumentalidade do processo, eletrônico ou não:
“a consciência de que as exigências formais do processo não passam de técnicas destinadas a impedir abusos e conferir certeza aos litigantes (due process of law), manda que elas não sejam tratadas como fins em si mesmas, senão como instrumento a serviço de um fim. Cada ato processual tem um fim, ou escopo específico, e todos eles em conjunto têm o escopo de produzir uma tutela jurisdicional justa, mediante um processo seguro. Tal é a idéia da instrumentalidade das formas processuais, que se associa à liberdade das formas e à não-taxatividade das nulidades, na composição de um sistema fundado na razão e consciência dos escopos a realizar.”
Diante das seguintes contraditas feitas ao Ato Executivo do TJRJ, é fato jurídico e notório que tais normas prescritas não possuem as condições de existência e validade no mundo positivo jurídico. Os instrumentos jurídicos processuais existem e visam garantir o julgamento do mérito em busca da pacificação social por qualquer meio a disposição dos cidadãos, o que não ocorre diuturnamente neste tribunal. São normas vazias de conteúdo jurídico, político e social, mas que na prática obstam direitos e esmagam o Estado Social e Democrático de Direito.
3. Do Ataque ao Devido Processo Legal, da Ampla Defesa, do Contraditório, Direito de Ação, do Direito de Petição e o Acesso à Justiça
Por fim, já diante da ilegalidade deste Ato, há que se fazer a radiografia das inconstitucionalidades praticadas por este tribunal judiciário, que deveria ser guardião da JUSTIÇA.
A conclusão, frente à este estado de ilegalidades e ilicitudes, cotidianamente praticadas, em prol de uma suposta celeridade, deve caminhar no sentido de que há ataque direto e frontal à CF 1988, erodindo-se todas as garantias individuais dos cidadãos e impedindo o trabalho dos profissionais do direito envolvidos por estas normas.
Para Nelson Nery Júnior, o devido processo legal, que foi atacado por este Ato Executivo e pelas decisões de revelia emitidas pelos serventuários do judiciário, é “o direito à tutela jurisdicional adequada, garantido pela CF 5º XXXV, pressupõe a existência e o desenvolvimento de um processo devido (fair procedure, faires verfahren, giusto processo)”[1].
O procedimento eletrônico, tal como previsto por este Ato Executivo não promove efetivamente o devido processo legal nem os princípios que se derivam dele, tais como o da ampla defesa, contraditório, o direito de ação, o direito de petição e o acesso à justiça.
Neste caso, o direito à tutela jurisdicional (direito de ação) foi extirpado, pois nenhuma “lei excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito” (art. 5º, inc. XXXV). O cadastro em sistemas informatizados anteriores à audiência, como requisito além do que foi determinado pelo CPC, é abusivo e afasta do Poder Judiciário o proferimento da tutela jurisdicional adequada ao desenvolvimento do devido processo legal.
Por outro lado, também o direito de petição, instrumento necessário para combater as ilegalidades e abusos de poder, foi retirado dos cidadãos, pois o Judiciário impõe barreiras à participação e inclusão. Aliás, a inclusão digital é um tema não enfrentado pelo TJRJ. O que ocorreria se o advogado ou cidadão não tivesse acesso à internet? É uma dupla exclusão: ao processo e à internet? Pergunta ainda sem resposta para a grande maioria dos tribunais brasileiros.
Nelson Nery Junior ensina sobre o direito de petição garantido constitucionalmente e que não está sendo protegido pelo TJRJ:
“O direito de petição é um direito político, que pode ser exercido por qualquer um, pessoa física ou jurídica, sem forma rígida de procedimento para fazer-se valer, caracterizando-se pela informalidade, bastando a identificação do peticionário e o conteúdo sumário do que se pretende do órgão público destinatário do pedido”[2] (grifo do Autor e nosso).
O Ato Executivo emitido pelo TJRJ amplia obstáculos e barreiras ao acesso para o Judiciário, pois condiciona o exercício do direito de ação e petição à condição do pré cadastro nos sistemas informatizados. Estes caminhos tortuosos de impedimentos criados pelo Ato Executivo são inconstitucionais por criarem expedientes impeditivos para o exercício dos direitos, forçando a exclusão de tutela jurisdicional, além da digital.
É o mesmo raciocínio emitido pela Súmula 667 do STF, pois há uma barreira levantada para o exercício do direito: “Viola a garantia constitucional do acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa”.
Configura-se inconstitucional o Ato Executivo do TJRJ n. 5.877/2010, principalmente no que tange aos arts. 6º e 7º, pois ignora todas as leis processuais especiais e gerais e a CF de 1988, criando barreiras físicas e tecnológicas para o exercício dos direitos constitucionais dos cidadãos de ingressarem e se defenderem no Poder Judiciário.
Esta análise sucinta aponta uma realidade incômoda a todos que trabalham com o procedimento eletrônico: a de que muito tem se feito tecnologicamente sem o resguardo das leis e direitos fundamentais processuais conquistados durante anos e anos de História. Um kafkaniano procedimento eletrônico vem impingindo a todos das mazelas administrativas do Poder Judiciário, que o utiliza como tábua de salvação para problemas orgânicos. Infelizmente, o triunfalismo tecnológico não pode esconder os inúmeros problemas atualmente verificados na construção de um procedimento eletrônico justo. É o momento sim desta crítica, mas acredito que seja o momento da abertura e da construção desde que haja permissão do Judiciário para tanto.
TJRJ, delete este Ato Executivo da sua vida e abra espaços cidadãos de uma construção processual eletrônica participativa e colaborativa, a fim de que as supostas conquistas não fiquem somente no campo tecnológico. Conquistas efêmeras por sinal, pois não consubstanciadas em efetivação dos direitos conquistados. Eu me coloco à disposição.
[1] Princípios do Processo na Constituição Federal. 9ª edição revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 88.
[2] Princípios do Processo na Constituição Federal. 9ª edição revista, ampliada e atualizada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 173.