por Victor Hugo Pereira Gonçalves[1]
Há um problema que assola o Poder Judiciário atualmente e que não é enfrentado por todos os envolvidos: a questão da perícia e dos procedimentos técnicos e jurídicos para a realização de perícia forense em sistemas informatizados.
Muitos dos problemas existentes perpassam uma série complexa de situações e normas que não obedecem as melhores práticas tecnológicas e jurídicas. Alguns julgados passam ao largo de questões importantes e que alteram substancialmente o rumo da verdade dos autos. Aliás, é princípio básico de um processo judiciário a construção da pacificação social por meio de procedimentos claros e transparentes, que gerem uma verdade consistente e plausível. Só se constrói esta verdade na confluência entre o conhecimento jurídico e a racionalidade tecnológica.
Apesar destes requisitos que sempre permearam o processo judiciário[2], com o advento da internet e da virtualização dos procedimentos processuais algo se perdeu no meio do caminho da racionalidade tecnológica. O Poder Judiciário, por deficiências históricas que lhe são inerentes, principalmente as que tocam a eficiência e celeridade processual, assumiu a tecnologia como meio para superar estas situações negativas. Fia-se este pensamento no triunfalismo tecnológico que, em sua visão, sanará todos os problemas de má gestão e administração da Justiça no Brasil. Diante deste triunfalismo tecnológico, já criticado anteriormente[3], vários erros vêm sendo cometidos diariamente e, não raro, em detrimento de conquistas históricas e sociais refletidas nos direitos humanos.
Escolhas técnicas mal direcionadas e formuladas estão reificando os mesmos problemas de ineficiência e lentidão do Poder Judiciário com o aditivo mais perigoso: caminhos escolhidos que vão contra direitos humanos conquistados e que são refletidos em princípios processuais. Princípios processuais de garantia da cidadania estão afrontados por escolhas tecnológicas inadequadas. Princípios do devido processo legal, da informação, de acesso ao judiciário, de petição, de ampla defesa e contraditório, dentre outros, são diariamente atacados por softwares e sítios feitos por engenheiros que não vivem diariamente o Poder Judiciário, o processo judicial e seus atores (juízes, advogados, cartorários e cidadãos).
A suposta celeridade conquistada não se constrói em busca da pacificação social, pois a verdade dos autos, principalmente nas questões relativas à perícia forense em sistemas informatizados, fica prejudicada e inviável de ser construída materialmente. A verdade formal do processo se sobrepõe à verdade material, que é a obtida por procedimentos da melhor técnica conhecida somados ao respeito aos direitos humanos processuais.
E nesta busca do equilíbrio necessário à construção da verdade material dos processos, todos os atores envolvidos têm falhado continuamente. Vários fatores podem ser apontados como símbolos destas falhas: falta de compreensão das técnicas e tecnologias envolvidas nas construções de softwares e sistemas de gerenciamento; falta de treinamento destes atores nas ferramentas e escolhas tecnológicas implementadas; a exclusão digital da maioria dos atores envolvidos; falta de profissionais qualificados para desenvolverem estas interfaces entre o jurídico e técnico; ausência de diálogos consistentes entre os atores envolvidos; falta de parâmetros procedimentais tecnológicos e jurídicos para o desenvolvimento de perícias, incluída as de sistemas informatizados, etc.
As complexidades acima trazidas podem gerar inúmeros artigos e estudos, contudo, pela falta de espaço e numa tentativa não reducionista mas simples de lidar com todos estes problemas, este pequeno artigo tem como incumbência introduzir os direitos humanos como parâmetro inicial para desenvolver políticas e práticas procedimentais corretas e constitucionais, principalmente em relação às perícias em sistemas informatizados. Assim, a técnica, dentro da visão jurídica, tem de se adequar aos ditames e parâmetros definidos pelos direitos humanos e não o contrário, como tem ocorrido desde a implantação da Lei de Processo Eletrônico (Lei n. 11.419/2006).
Por outro lado, os direitos humanos não são absolutos e somente podem ser restringidos mediante ordem judicial fundamentada para tanto. Os limites a serem impostos aos direitos fundamentais estão relacionados ao que se quer investigar, como e com quais ferramentas e ao princípio da intervenção mínima para alcançar os objetivos necessários. É neste duplo conceitual de limitações em que a racionalidade tecnológica e os direitos humanos devem construir a verdade material dos processos judiciais, que chamo de Teoria de Shylock.
Shylock é um judeu agiota da história de William Shakespeare, o Mercador de Veneza. Antonio, um grande comerciante veneziano, toma dinheiro emprestado de Shylock e promete pagar num determinado dia. Por força maior, o carregamento de produtos de Antonio afunda no Mediterrâneo e Antônio não consegue pagar a dívida com Shylock. Este, que possuía um ódio muito grande contra Antônio, em vez de cobrar juros do descumprimento, requereu, por contrato, o coração de Antônio. Este tentou contra argumentar esta cláusula, no que foi rechaçado por Shylock, que quis executar o contrato.
O caso foi para o Judiciário. Àquela época era permitido este tipo de cláusula penal, que podia ser executada via judiciário. Depois de inúmeros debates, Shylock quase conseguindo o cumprimento da obrigação, o juiz da sentença de Antônio argumentou que, se fosse executado o contrato, este teria que cumpri-lo à risca e dentro dos limites impostos pela letra que assegurava o seu direito. Assim decidiu o juiz da causa:
“Um momentinho, apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens, nem uma gota. São palavras expressas: “uma libra de carne. Tira, pois, o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito”.
O sangue não estava escrito no contrato como multa pelo descumprimento, somente o coração. Assim, a letra da lei, que foi o acordo entre as partes, não poderia ser descumprida com o derramamento de sangue que não estava inscrito nela. O sangue, simbólica e juridicamente, era o excesso da execução do detentor do direito. E este excesso deve ser restringido e coibido, como o foi na peça.
Assim, o caso literário de Shylock, conceitualmente, aplica-se a todos os casos de perícia em sistemas informatizados, pois, desde o pedido inicial até o cumprimento do mandado, em toda a cadeia procedimental que leva até a obtenção da prova, de forma lícita, os envolvidos deverão realizar as práticas que respeitem este binômio: melhores práticas técnicas e respeito aos direitos humanos fundamentais.
Se o coração tecnicamente não pode ser obtido sem o sangue, não há como se implementar mandado de execução. A racionalidade inviabiliza a continuidade da perícia. Logicamente, esta questão do Shylock se fosse aplicada à luz dos direitos humanos não poderia nem ser aventada a possibilidade de se executar o coração de alguém, já que fere o princípio máximo da dignidade da pessoa humana[4] albergado em todos os tratados internacionais e no art. 1, inc. III, da Constituição brasileira de 1988. É no exercício desta lógica estratégica que uma perícia em sistema informatizado sempre deve ser realizada e, para tanto, deve-se buscar as melhores técnicas (jurídica e tecnológica) para se construir o caminho da verdade material dos autos.
Infelizmente, nas perícias em sistemas informatizados em tempos de procedimento eletrônico realizadas no Poder Judiciário, estão desconsiderando os direitos fundamentais e até as melhores práticas (jurídicas e tecnológicas). Exemplos não faltam de total despreocupação com os metódos rigorosos de pesquisa científica que determinam condenados e inocentes, vitórias ou derrotas em indenizações. Em alguns casos, o Judiciário, guardadas as devidas proporções, para executar determinados direitos ou prisões de supostos criminosos tem tirado coração com sangue e tudo. Caso que demonstra isto é o da atriz Carolina Dieckman, que deu desencadeou uma lei de crimes informáticos. Em investigação não muito clara e totalmente arbitrária, foi preso alguém que, a priori, poderia ter divulgado as fotos de nudez desta atriz. Qual foi o procedimento empregado à captura deste suposto acusado? As máquinas de investigação invadiram dados pessoais do acusado? Houve invasão de privacidade? O mandado judicial determinou corretamente o que estava sendo investigado e orientou a busca de provas? Nada disto foi informado nem qual foi o procedimento aplicado para a captura do acusado e nem mesmo se a própria vítima se expôs a esta situação.
A título de exemplo, nos casos de pedofilia infantil na internet, existem inúmeros problemas investigativos que vão desde o despacho judicial até a conclusão do processo na sentença. Todos os mandados deste crime devem obedecer os direitos fundamentais de forma específica e clara e determinar que tipos de arquivos a investigação requer, ou seja, arquivos de imagens e vídeos e quais são os requisitos técnicos mínimos para a coleta. Contudo, não raro, os peritos, sem quaisquer procedimentos traçados e acordados, abusam do direito atribuído à busca e apreensão e amealham arquivos nas extensões pdf, word, exe, odt, ODF, ppt, etc., sem justificar tecnicamente se estavam capturando imagens e vídeos dentro destes formatos e qual tecnologia estavam aplicando. Assim, algumas situações são verificadas: os peritos não determinam as ferramentas que irão utilizar; não bloqueiam a comunicação da entrada USB; não determinam e divulgam as técnicas de espelhamento do HD necessárias para o desenvolvimento da investigação pericial, enfim, uma série de situações que inviabilizam a integridade jurídica e técnica da prova. Diante disto, estas perícias extrapolam os limites técnicos e acabam por invadir direitos fundamentais dos envolvidos e dos não envolvidos, por não respeitarem o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, além dos princípios da segurança jurídica e tecnológica.
Os estudiosos do Direito também se alinha a este posicionamento: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”[5].
Vê-se claramente que a Teoria de Shylock, ou seja, a busca do desenvolvimento das melhores práticas tecnológicas com respeito aos direitos humanos, deve servir de parâmetro de atuação para todos os atores de processos extrajudiciais e judiciais, a fim de que as perícias realizadas produzam provas íntegras, autênticas e válidas para ensejaram principalmente decisões verdadeiras e justas.
Perícias em sistemas informatizados negligentes ou fora de parâmetros procedimentais rígidos podem construir provas falsas e destruir a vida de seres humanos, que se tornam duplamente vítimas de sua ignorância e do despreparo dos atores (peritos, juízes e advogados) que deveriam aplicar os melhores métodos tecnológicos e jurídicos e não o fazem.
BIBLIOGRAFIA
GONÇALVES, Victor Hugo Pereira. A Inclusão Digital como Direito Fundamental. Dissertação de Mestrado defendido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Março/2012.
GRINOVER, Ada Pelegrini., Filho, Antonio Magalhães Gomes., Fernandes, Antonio Scarance. As Nulidades no Processo Penal. 12ª edição revista e atualizada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
[1] Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP (2004), em História pela Universidade de São Paulo – USP (2005), Professor da FATEC Carapicuíba em Direito Empresarial (2006-2008) e Segurança Empresarial. Pesquisador do Grupo de Perícia Forense em Sistemas Informatizados do CnPq. Vice-Presidente da Comissão de Responsabilidade Social da OAB/SP (2006-2008). Mestre em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
[2] Leia o livro de Michel Foucault, “A Verdade e as Formas Jurídicas”.
[3] No meu mestrado, defendido em 2012, “A Inclusão Digital como Direito Fundamental”, apontei os problemas do triunfalismo tecnológico: “Não são poucos autores que imputam a tecnologia a salvação das mazelas humanas e da superação de todos os problemas, por exemplo, com o aumento na velocidade das redes. Marc Guillaume (2010, apud MARK DERY, 2010, p. 143) critica esta visão do triunfalismo: ‘O discurso pregado sobre a ‘sociedade da informação’ é, assim, portador de um triunfalismo um pouco excessivo, que o filósofo Jean Brun chama de um otimismo sob crítica ou ainda uma retórica do sublime tecnológico’. O triunfalismo tecnológico esconde os poderes e saberes que se desenvolvem dentro das redes para controlar e vigiar como os indivíduos interagem e se relacionam. Por outro lado, o sublime tecnológico concentra em si a capacidade de transformação social em detrimento de outros aspectos mais relevantes ligados a necessidade humana e a construção de valores. Assim, a tecnologia passa de meio relevante de transformação social para obstáculo impeditivo de aquisição de direitos.
[4] Ver Ingo Sarlet: Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.
[5] Grinover, Ada Pelegrini. As Nulidades no Processo Penal, p. 123.