O mantra que todos enunciam é o de que o Processo Eletrônico, que nada mais é do que um Procedimento Eletrônico, já que ele não muda a teoria geral do processo, vai ser o início de um novo Poder Judiciário: mais rápido e mais eficiente.
Contudo, os computadores não podem por eles mesmos resolverem uma série de problemas que não se solucionam somente com a velocidade de processamento de informações. O Poder Judiciário tem uma série de desafios a enfrentar aos quais, em momento algum, sequer se questionou neste período de 7 anos de implantação do Procedimento Eletrônico no país.
Para enumerar os exemplos, sem intenção de ampliar a análises deles, o que não é objeto deste pequeno trabalho, o Poder Judiciário ainda não se questionou sobre quais informações são públicas e privadas, sobre a inclusão digital dos usuários do sistema eletrônico, sobre os formatos proprietários em detrimento dos abertos apregoados pela Lei de Procedimento Eletrônico, sobre a não implementação do recebimento de petições e documentos em áudio e vídeo e, principalmente, sobre como colher provas nestes sistemas informatizados. É neste último ponto que apresentaremos alguns problemas.
Todo sistema de provas necessariamente se constrói numa rede de relações, legitimidades e confianças de que o que está gravado, suporte físico ou tecnológico, ou testemunhado é um fato constatável e verificável, empiricamente ou não. Contudo, cada sociedade desenvolveu historicamente o seu próprio sistema de provas. Na Idade Média, como atualmente em alguns países muçulmanos[1], o testemunho de pessoas têm mais peso na decisão dos julgadores e da sociedade do que provas científicas ou empíricas. Há um tempo não muito longínquo, no Brasil, o exame de DNA não era aceito nas ações de investigação de paternidade.
Neste sentido, cada sistema de provas atribui a um determinado fator social ou cultural ou campo de conhecimento uma valoração maior ou menor probante de uma relação litigiosa. No Brasil, o sistema de provas está vinculado à racionalidade, em geral científica, principalmente nos litígios judiciais, na aplicação do princípio do livre convencimento motivado. A partir do momento que todo procedimento judicial caminha impositivamente para as redes e sistemas informatizados, verifica-se uma escolha do legislador de que também o sistema de provas deve ser ligado a uma racionalidade técnico científica. Esta racionalidade técnico científica não está no domínio do conhecimento jurídico, é construída fora dele e por outros campos do conhecimento, os quais devem ser respeitados e resguardados.
Contudo, o que está se produzindo nas ações que envolvem produção de provas no Poder Judiciário é totalmente contrário a esta racionalidade técnico científica que o sistema de provas do Procedimento Eletrônico exige. Algumas ações são campos abertos para situações surreais. Existem peritos judiciais que somente tiram fotos de servidores para provarem invasão de sistema. Peritos judiciais são nomeados para área de informática e têm formação em engenharia civil e o laudo que produzem são aceitos. Perícias que são realizadas sem a cadeia de custódia. Perícias da Polícia Federal realizadas sem o uso de procedimentos técnicos devidos para se impedir a contaminação das provas. Enfim, uma série de problemas que não só desrespeitam metodologias técnicas, mas direitos humanos dos periciados, pois geralmente estas perícias extrapolam os limites do que é determinado e pedido nos autos da ação e do inquérito.
Algumas perguntas, diante destes casos, seguem sem respostas: por quê o Poder Judiciário ainda não atualizou os seus procedimentos para a verificação e constatação de autenticidade, integridade e veracidade de documentos digitais? Mais além, por quê o Poder Judiciário não produziu procedimentos para se obter provas de sistemas informatizados de forma confiável e mais próxima dos objetivos do processo judicial: realizar a justiça e a pacificação social dentro dos autos?
Muito dos problemas acima constatados mostram que as práticas judiciárias são o retorno das trevas na construção das provas digitais. Todo o conhecimento desenvolvido nas ciências forenses no século XX estão sendo ignoradas nas atuais perícias em sistemas informatizados. Não há padrão nem procedimentos uniformes para todos os juízes e peritos. Não há requisito técnico mínimo para a nomeação de peritos judiciais, tais como cursos e experiências com determinados sistemas e hardwares. A produção de provas não seguem padrões determinados por estudos e normas técnicas, principalmente as da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), que já estão previstas em leis tal como o Código de Defesa do Consumidor. Por outro lado, como contrapeso que deveria funcionar, os tribunais não conseguem analisar corretamente a produção de prova nas primeiras instâncias, pois não sabem lidar com estas questões técnicas, geralmente aprovando o que foi decidido anteriormente. Ao cabo, percebe-se nitidamente que o sistema judiciário não tem capacidade para rever e combater estes desvios de má formação das provas, acabando por perpetuar preconceitos em vez de qualificar a busca da verdade material.
Diante de todas estas ausências, cabem mais algumas perguntas: que verdades estamos produzindo nos processos judiciais atualmente? Se a metodologia técnico científica não é respeitada, as decisões judiciais produzem que tipo de convencimento motivado?
O Processo Eletrônico sem procedimentos claros para todos envolvidos (advogados, peritos, assistentes técnicos e juízes) acabará por produzir mais crenças do que decisões motivadas em provas válidas e autênticas.
[1] Vejam o filme iraniano “A Seperação”, que ganhou há dois anos atrás.