Na esteira da portaria do ministro da Justiça, Flávio Dino, a Secretaria Nacional do Consumidor anunciou no fim da quinta-feira, 13/4 que deu 72 horas para que as plataformas online encaminhem um relatório sobre as medidas tomadas para fins de monitoramento, limitação e restrição dos conteúdos que incitem violência contra escolas e estudantes. E segundo informado pelo MJ, as redes sociais já começaram a remover os conteúdos indicados pelo governo.
As medidas anunciadas pelo Ministério da Justiça dividem especialistas. Por um lado, há o entendimento de que se trata de uma resposta forte, mas à altura da crise de segurança gerada pela conjunção de episódios violentos e mortes de crianças, associada a uma onda de ameaças ou boatos que passaram a circular na internet. “Diante da disseminação do medo, é preciso uma resposta. E a portaria é uma resposta emergencial à altura da gravidade dos acontecimentos, com referências expressas e claras ao contexto legal em que deve ser interpretada”, resume a advogada e militante dos direitos digitais Flávia Lefèvre.
“A urgência do caso e a gravidade do que acontece nas escolas requer, sim, ações firmes. Mas o governo poderia ter acionado a Justiça, que já se mostrou bastante célere em temas desta natureza, em vez de tentar resolver um problema muito complexo com a caneta de uma pessoa”, afirma a também militante de direitos digitais e representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet, Bia Barbosa.
São posições pra lá de ilustrativas da dualidade da medida governamental, porque Flávia e Bia não apenas militam na mesma causa como o fazem lado a lado, em geral completamente alinhadas, sendo ambas integrantes da Coalizão Direitos na Rede, grupo que reúne mais de 50 entidades cuja maior afinidade é a luta pelos direitos humanos e digitais.
“Não poderia ser contra a medida, porque já defendo há anos que o Código de Defesa do Consumidor é um instrumento importante. Não se trata de uma lei menor, mas sim de regras sobre atividade econômica. A oferta com segurança é inerente à atividade de quem oferece um produto ou um serviço. Assim como existe livre iniciativa, existe o dever de responsabilidade e o risco do negócio. Estamos falando de redes que reúnem quase 200 milhões de pessoas só no Brasil, bilhões no mundo. Meu único ponto de ressalva é que essa portaria deveria ter prazo de vigência, já que se trata de uma situação emergencial. Poderia ser até prorrogada, mas com prazo”, diz Flávia Lefèvre.
O uso do CDC para balizar a medida é um ponto de pouca discórdia. A principal crítica é o instrumento – uma portaria ministerial orientando o uso de notificações para exigir remoção de conteúdo sem ordem judicial. O Ministério da Justiça tem se esforçado na interpretação de que isso não afronta o Marco Civil da Internet – em vão, para quem conhece a Lei 12.965/14 e como ela foi elaborada. Daí o temor com o precedente.
“A portaria deixa bastante claro os riscos de medidas administrativas como esta para o legítimo exercício da liberdade de expressão e para a privacidade dos usuários. Pensemos o que seria um governo Bolsonaro notificando plataformas para removerem conteúdos sobre vacinas durante a pandemia e dizendo que, se os conteúdos não fossem removidos, que os serviços poderiam ser suspensos”, aponta Bia Barbosa.
“É por isso que os padrões internacionais de liberdade de expressão falam da importância do estabelecimento de órgãos reguladores independentes dos governos de plantão para tratar de temas de conteúdo. Infelizmente, ao mesmo tempo em que o governo não assume o compromisso de criar este órgão – no âmbito dos debates sobre regulação de plataformas que acontecem neste momento no congresso -, opta por fazer isso sem base legal. O CDC pode e deve ser usado para responsabilizar as plataformas sobre o serviço que prestam. Mas entre isso e a notificação administrativa com dever de remoção há um caminho muito longo”, completa.
Para Flávia, é importante a percepção de que a portaria não existe sozinha, mas traz os contornos específicos em que as remoções de conteúdo deverão ser efetuadas. Nesse sentido, além do já mencionado Código de Defesa do Consumidor, as determinações da norma ministerial também devem ser entendidas à luz do Marco Civil da Internet e do Código Civil. “Não há canetada. As sanções, se houverem, se darão a partir de processos administrativos, com direito a contraditório. E reforço que se trata de uma ação emergencial diante de grave ameaça. Porque também não é aceitável que se caia no imobilismo”, diz a advogada.
Esse contorno legal é um dos focos das controvérsias sobre a portaria do MJ, mas há também questões técnicas. Como lembra o advogado, professor e diretor de Inovação e Ensino da Smart3, Walter Capanema, “há boas intenções na Portaria 351/2023 e a fundamentação jurídica apresentada é muito interessante, contudo, há uma questão muito importante, ligada à arquitetura da Internet”.
É que no Brasil, mesmo com os avanços dos últimos anos, menos da metade dos endereços usam a versão 6 do protocolo internet – IPv6, que garante identificação praticamente inequívoca para cada dispositivo conectado. “Diante da crise de esgotamento dos números IP no IPv4, os provedores de conexão usam soluções de compartilhamento de um mesmo número para diversos dispositivos”, lembra Capanema. “O governo apresentou uma resposta rápida a um problema muito sério, contudo, algumas das medidas adotadas podem trazer riscos a pessoas inocentes.”
O professor do CESAR e cientista-chefe da TDS.company e presidente do conselho do Porto Digital, Silvio Meira, lembra ainda que toda essa discussão vai muito mais a fundo, envolve uma guerra híbrida, não declarada, contra a democracia e as instituições, em um contexto em que a disseminação de desinformação fomenta radicalismos – vide a recentíssima história brasileira, mas não só.
Nesse sentido, ele avalia que a ação do governo terá o predicado de fazer as plataformas online atenderem a um chamado inadiável. “Acredito que a portaria é a forma encontrada para colocar as redes sociais à sério nas mesas de discussões”, aponta Silvio Meira. “As estruturas e incentivos das redes são a arquitetura e os mecanismos que fazem com que as pessoas criem, publiquem e consumam certos tipos de conteúdo e sejam reconhecidas, recompensadas e remuneradas por isso. Os algoritmos das plataformas e a monetização do conteúdo são parte do problema. E da solução.”
Fonte:
https://www.convergenciadigital.com.br/Internet/Governo-X-redes-sociais%3A-Medida-e-resposta-emergencial-forte%2C-mas-tambem-arriscada-62990.html